O sol caía a pique e o asfalto ardia.
O olhar dela se deteve na baldosa floja , recorreu a cidade solitária onde os meninos jogavam bolinha de gude, os ramos das árvores, suas copas sedosas. Enjoada aspirou o ar que sua pele reconheceu. Minha rua, disse, e sorriu.
Liliana vem até mim, cheia de cachos. Temos nove anos e um montão de tarefas. Liliana e Maria Cristina Longobardi com os aventais brancos e com chicletes na boca.
Me olham com estranheza. Coloco minha mochila no ombro, quero dizer vou com vocês, mas elas me olham assombradas, pensam, não sei, que de repente cresci, que não sou quem sou, esta menina magra e tímida que ameaça um sorriso, enquanto as lágrimas caem, não deixam de cair, por que não me reconhecem minhas amigas?, seguem pulando corda, enquanto eu, desconcertada, volto à porta de minha casa, de costas, procuro a maçaneta, giro, e sigo voltando até o frescor insólito do saguão, o cheiro de jasmins me inunda, toda casa é um jasmim que me recebe, e com meus cinco anos me jogo nos braços de mamãe, vem minha menina, o que houve?, e quero contar, explicar tudo, mas sou esta bebê loira e rechonchuda de um ano, com dois dentinhos afiados, e sei apenas balbuciar. Mamãe me tira do berço e me aperta contra seu peito enquanto desço do avião em Ezeiza, de mãos dadas com meus dois filhos, nove anos depois do exílio. Olho a cidade.
O sol cai a pique e o asfalto arde.
o que busca nesta rua?
a última imagem?
o pequeno pedaço de sombra
que se foi desenroscando
entre objetos em desuso
e sons ásperos?
acaso uma antiga desordem
papéis,
cartas que nunca enviei
e viagens ao medo
na década de setenta?
ou o regresso
com a última palavra?
às vezes se delatam
às vezes é essa casa
que tudo contém
como se existisse só para hospedar ausências
fantasmas que deslizam
acendendo luzes
e abrindo portas
para que eu os reconheça
conviva com o maior dos mistérios
e sustente com amor
o que se nega a desaparecer
se dissolve entre as sombras
e o tempo se povoa de países
tristezas e nostalgias
de alguns lugares não se volta
ficam os pedaços vagando
restos ainda dispersos
voam no ar
como os sorrisos
os medos
as ausências
de alguns lugares não se volta
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